terça-feira, 6 de fevereiro de 2007

Henrique Carvalho Ghidetti

Que surpresa quando José Galindo morreu. Logo ele. É, logo o Galindo, sempre categórico ao afirmar:

— Não há, não houve nem haverá vida melhor que a minha. Igual, pode ser; melhor, nunca.

Diante do mutismo geral, que sempre se seguia a essa afirmação, Zé Galindo ainda reforçava:

— Pois não tem, ora! Que pinóia! Não estou dizendo?

E sempre alguém contemporizava:

— Está bom, Zé, se você está falando. Quem somos nós para duvidar?

Se o assunto era a morte, mais especificamente o suicídio, Galindo chegava a ficar em pé para declarar, vermelho como um tomate maduro:

— Troço mais besta! Se se matou é porque não tinha o que fazer, que só desocupado para pensar num troço assim tão besta. Gente mais besta! Quem se mata merece mais é ir para o inferno. Se tenta se matar e não morre, merece mais é levar uma surra. Uma não, duas! Daquelas, com umbigo de boi!

Esse era um assunto recorrente no boteco quando o Galindo ficava até mais tarde bebendo com a turma boêmia. Dependia apenas de se atingir um certo grau etílico. Atingido o patamar, a coisa funcionava no automático, era só esperar que o Galindo começava a se gabar de sua vida e a vituperar contra o suicídio.

Num âmbito mais pessoal, a história também era sempre a mesma, o Zé ufano, batendo no peito:

— Ninguém é mais ocupado que eu. Minha vida é a mais cheia de compromisso e obrigação do mundo. Por isso que ela é boa. Vá ver se eu fico agora com essas frescuras de suicídio. Vá ver!

Chefe da recepção da prefeitura municipal, como ele mesmo gostava de se intitular, ou simplesmente porteiro, como constava dos assentamentos, o fato é que José Galindo era o único integrante do quadro de portaria da prefeitura, o que, numa municipalidade tão minúscula, tornava-o, quase todo o tempo, praticamente chefe de si mesmo.

O pessoal da prefeitura resumia-se ao prefeito, à secretária particular do prefeito, a um rapaz que cuidava dos arquivos e nos momentos de ócio fumava maconha — ele consumia uma quantidade apreciável do bagulho — e ao Galindo.

Não demorou muito para que o Galindo e o rapaz dos arquivos, investidos em suas sinecuras, notassem que não tinham praticamente nada para fazer. Então cada um desenvolveu um modo próprio de preencher todo aquele tempo morto. O jovem dos arquivos lia e se entretinha com seus artefatos fumígenos. O Galindo, que realmente era ativo por natureza, começou, dentre outras coisas, a cuidar do jardim da prefeitura.

Foi assim, despretensiosamente, que teve início o negócio que mudaria a vida do Galindo. Por conta própria, lá um dia Zé Galindo passou a dar uns tratos no jardim. Verdade seja dita, ele só começou a fazer aquilo para ocupar o tempo, só para não ficar o dia todo à toa sentado num banquinho, à espera de vivalma que desse as caras na prefeitura, algo muito pouco provável.

E realmente, depois que o Galindo pôs mãos à obra, o jardim da prefeitura, que não passava de um matagal abandonado, ficou todo florido e aparado. O prefeito viu aquilo e gostou, ainda mais quando a visão proporcionou-lhe digamos que um lampejo.

Tão logo pôde, o prefeito chamou José Galindo para um particular e sugeriu-lhe que criasse uma firma de paisagismo e jardinagem, a qual deveria ser registrada no nome da mulher ou de algum outro parente ou amigo de confiança do Galindo.

Algum tempo depois, a prefeitura fez uma licitação para contratar serviços de jardinagem e manutenção e, surpresa, a recém-criada firma da Senhora Galindo venceu o certame.

Depois disso, a renda da família Galindo cresceu substancialmente, mesmo depois de descontado o donativo mensal feito a uma fundação de assistência dirigida pela primeira-dama.

Galindo, previdente, com as sobras que começaram a surgir em seus ganhos, lançou-se no ramo dos empréstimos remunerados. E descobriu que a usura caía-lhe como uma luva.

Dizia-se haver pessoas, decerto poucas, ou, mais ainda, muito poucas, se é que as havia, que até gostavam de dever ao Galindo. Exageros à parte, havia realmente um consenso sobre o fato de o Zé saber cobrar e conseguir receber seus créditos sem expor seus mutuários, talento muito apreciável num agiota, ainda mais quando sua principal área de atuação é uma minúscula cidadezinha do interior.

O Zé, de natureza, era simpático, polido, solícito, sempre com aquela cara parva de alguém em quem se podia confiar, um sujeito de bem com a vida.

Com o que ganhava na portaria, na jardinagem e na usura, ele conseguia manter um padrão de vida bem razoável — tinha carros de luxo do ano, casa grande e bem arrumada, dinheiro no banco, propriedades rurais e filhos estudando na capital.

As coisas iam tão bem que ele até cogitava de concorrer à prefeitura na eleição seguinte. O prefeito, seu benfeitor, tinha como certa a eleição dele, prefeito, para a assembléia estadual, e deveras incluía o Galindo entre seus possíveis sucessores no governo municipal.

A vida sorria largo para o Galindo.

***

Era hábito do agente funerário largar o trabalho tarde. Grande parte de seu serviço precisava ser feita no porão da loja, onde ele guardava os caixões do estoque e outras mercadorias e onde havia uma pequena marcenaria em que se faziam ajustes nos produtos a pedido da clientela, além de ser também ali que se preparavam os cadáveres para a morada final, ou, se bem que muito raramente, porém, em razão da ausência de um necrotério ou de um hospital com mais recursos na região, o lugar em que o legista às vezes praticava alguma necropsia.

Durante o dia, o porão era quente demais para trabalhar, por isso o agente funerário reservava as horas de claridade para atender o público, indo noite e, eventualmente, madrugada adentro em seu trabalho no porão.

Naquela noite, como era mais comum, o agente funerário recolheu-se cerca de meia-noite. Ele tomou banho, comeu uma comida feita por sua mulher e foi se sentar em sua poltrona cativa para assistir a um noticiário tardio na televisão enquanto esperava o sono, que nunca demorava.

Ali, na poltrona macia e familiar, como sempre, o torpor se insinuou e foi aos poucos se alastrando, as pálpebras tornavam-se cada vez mais pesadas, o queixo parecia atraído por um imã para junto do peito. Ele gostava de ficar assim — banho tomado, barriga cheia, esparramado na velha poltrona e mergulhando em largos cochilos, dos quais os sons televisivos vinham tirá-lo só para ele poder afundar novamente no profundo abandono.

Sua casa ficava nos fundos da funerária, mas demorou um tanto para compreender, em meio à agradável modorra, que os violentos sons de coisas batendo e quebrando não vinham dos sonhos nem do televisor, mas sim de sua loja.

Quer dizer, o barulho talvez viesse de uma loja, que podia nem ser a dele, se há tantas lojas neste mundo. E nisso ele já ia voltando à deleitosa letargia, mas os latidos do cachorro e as admoestações de sua mulher em pânico arrancaram-no de vez daquela condição flutuante.

Mais que a contragosto, o agente funerário se levantou da poltrona e foi ver o que acontecia.

Na loja, o cenário era mais que caótico: luzes acesas, ao menos nas lâmpadas que não estavam quebradas; a porta, que era de ferro, simplesmente fora posta abaixo e jazia no chão junto com pedaços da parede soltos sob o impacto que a derrubara com moldura e tudo; os caixões do mostruário tinham todos sido jogados no chão em total desordem. Tudo estava fora do lugar, quando não também quebrado, mas sobre o balcão havia um gordo maço de dinheiro, bastante para cobrir talvez três vezes o prejuízo causado.

Um pouco acalmado por conta do dinheiro que encontrou entre os escombros de seu comércio, entretanto ainda completamente perplexo pela magnitude do acontecido, o agente funerário saiu à rua, onde alguns vizinhos, de pijama e mal despertos, perguntavam a esmo o que fora aquilo.

As interpelações vinham de todos os lados, mas o agente funerário nada dizia, apenas olhava para o fim da rua, bem lá para baixo, de onde decrescia um som de coisa sendo batida e arrastada nos paralelepípedos do calçamento.

E olhando lá para o fim da rua, imitando o que o agente funerário em silêncio fazia, muitos puderam distinguir, apesar da distância e da fraca iluminação pública, uma figura seminua, parecia que aos gritos, correndo e puxando um caixão por uma corda.

Os vizinhos se agruparam em torno do defunteiro, o falatório diminuiu até uma mudez quase total. Sem a torrente de perguntas e exclamações, apenas olhando todos para o mesmo lado, notou-se claramente que, de fato, além de correr arrastando um pesado caixão, o sujeito ainda tinha fôlego de sobra para urrar e gemer ininterrupta e histericamente.

Foi então que a mulher do agente funerário, vencido o medo, arriscou sair da casa e, chegando à rua, também teve tempo de ver o maluco com o caixão, um pequeno vulto lá longe, sumir aos berros na escuridão enquanto ela fazia a pergunta:

— Ué, mas aquele não era o Zé Galindo?

Era o Galindo sim, que continuava em disparada pelas ruas da cidade, com uma das mãos segurando a corda por que arrastava o caixão e com a outra levando uma pá, também arrastada sobre o chão de pedra e por isso provocando uma intermitente faiscação naquela correria desenfreada.

É óbvio que, ao se movimentar daquele jeito, com a pá e a urna entre choques com a superfície de pedra da rua, o Galindo causava uma barulheira infernal, cujo perfeito complemento eram seus berros e gemidos de possesso e os clarões do atrito entre o metal da pá e o calçamento.

Mesmo onerado por carregar o caixão e da pá, aos quais se somava o peso de um volumoso revólver que trazia na cintura, ele corria desembestado qual touro enfurecido. Nada o detinha, nem mesmo as várias imperfeições do calçamento, cuja irregularidade no assentamento dos blocos de pedra tendia a deter o avanço do caixão. A força com que o Galindo o puxava, contudo, levava o artefato funerário a dar pinotes e curtos vôos cada vez que topava com uma imperfeição do pavimento, além de piruetas sobre o eixo da corda. E, a cada tropeço desses, o caixão subia no ar e descia com grande estrondo.

Sorte que o Galindo escolhera um esquife de primeira linha. Qualquer produto de qualidade inferior há muito já se teria desintegrado sob tanta pancada e solavanco. O Galindo realmente estava castigando o material em sua carreira desabalada.

Na cidadezinha minúscula, oito da noite já era noite profunda. Dez horas, então, nem se fale, dava para ouvir uma pluma tocando uma superfície de veludo. E o Galindo aprontava toda aquela zoeira cerca de uma da madrugada. Evidente que ele chamava atenção por onde quer que passasse, todo mundo corria para ver o que sucedia e, em vista da velocidade do Galindo, os curiosos só conseguiam percebê-lo quando já ia longe, sumindo na distância em seu desvario.

Ele se dirigia, claro, ao cemitério. Aonde mais iria alguém com um caixão, um revólver e uma pá?

O cemitério não ficava muito longe da praça principal. Aliás, nada ficava muito longe da praça principal, e a praça principal, além de principal, era também a única da cidade.

O que vem ao caso é que o Galindo passou pela praça, onde ficava o boteco dos boêmios, todos conhecidos do Zé, que freqüentava o lugar.

A turma do boteco foi a única, por estar desperta e próxima da via pública, que conseguiu chegar à rua antes da passagem do Galindo, que, gemendo, gritando, arrastando o caixão e a pá, descalço, sem camisa e com o revólver na cintura, passou pelo pessoal em disparada, sem se deter nem olhar para os lados.

No caminho para o cemitério, logo após a praça, ficava a floricultura, onde o Galindo parou. Tal como a funerária, a floricultura estava fechada; tal como a funerária, a floricultura teve a porta sumariamente derrubada. Lá dentro, vários baldes com água, cheios de largos maços de flores. Galindo, com um braço, envolveu todo um maço de crisântemos sortidos e tirou-o do balde.

Como na funerária, o Zé deixou sobre o balcão da floricultura dinheiro suficiente para pagar várias vezes o prejuízo causado. E lá foi ele, prosseguindo em seu vigoroso desembestamento, barulhento e possesso, agora avolumado também pela braçada de flores, sustentada sob o braço cuja mão arrastava a pá.

Muitos, após a surpresa da passagem do Zé, saíram à rua para tentar segui-lo, quem sabe até detê-lo. Uma coisa, porém, é falar; outra, estamos cansados de saber, é fazer. O Zé corria como um queniano — se não com a mesma elegância, certamente com a mesma velocidade e resistência; devemos convir, entretanto, que dificilmente se vêem quenianos correndo por aí portando um caixão, uma pá, um maço de flores e um revólver. O Zé fazia tudo com uma rapidez irreal. Mesmo com a parada na floricultura, não houve quem pudesse alcançá-lo, todos se cansavam logo e deixavam de tentar, continuavam a segui-lo andando, guiando-se por seus rastos. Diante das evidências, já se formara uma opinião geral, e correta, de que, tanto pelo trajeto tomado quanto pelos aparelhos transportados, ele se dirigia ao cemitério.

A rua que levava ao cemitério era uma ladeira reta e longa, em cuja extremidade mais baixa, impedindo-a de continuar, ficava o lúgubre portão da cidade dos pés juntos, portão esse que o Galindo escalou com uma agilidade simiesca depois de, com aquela força, aquela rapidez, aquela disposição descomunal, haver arremessado o caixão — que mais uma vez, ao se chocar com o solo, só não se desmanchou todo por ser de excepcional qualidade — lá para dentro, com a pá e as flores guardadas nele.

A multidão que seguia o Galindo não parava de crescer. Por mais que se corresse, não dava para chegar perto dele, que agia como que sob o impulso de um relâmpago, mas ainda assim, mais que saber depois por terceiros, todos queriam ver o que aconteceria. E, mesmo que de longe, muitos puderam assistir à espetacular invasão da necrópole.

O fato de a cena ter sido assistida de longe não diminuiu seu efeito sobre a platéia. Todos ficaram boquiabertos com a proeza do Galindo: arremessar um caixão de luxo sobre o portão de pelo menos três metros e meio de altura e depois escalá-lo mais rápido do que se vira uma maçaneta.

O agente funerário, pioneiro na perseguição, ao ver seu caixão permanecer inteiro depois de voar para dentro do cemitério e bater no chão de cimento, não pôde conter um elogio em voz alta a sua mercadoria. Aquilo é que era caixão para um descanso eterno.

Era noite. Dentro do cemitério, tudo escuro. Aquele povo, em sua grande maioria, só tinha coragem de se aproximar daqueles muros àquela hora por causa da curiosidade e porque era um grupo de muitos vivos.

Dentro do cemitério, não havia luz além do luar. Estava-se, porém, no intermédio do plenilúnio, como diria o erudito local, ou seja, no momento de maior luminosidade da lua cheia. Falando do que interessa, havia claridade suficiente para ver o que o Galindo fazia lá dentro.

Mesmo sem a lua cheia e o céu limpo para favorecer a visão, na mente de todos já havia uma idéia bem clara do que ocorria lá dentro. O Galindo cavava, cavava furiosamente e, conquanto fosse fácil prever isso, divertido era assistir ao espetáculo, sem dúvida único.

Alguns do lado de fora ainda tentaram escalar o muro do cemitério, só para chegarem à conclusão de que aquilo era impossível sem a ajuda de uma escada, ou ao menos de uma corda.

Nessa altura dos acontecimentos, já haviam despachado um moleque para avisar o zelador do cemitério e o delegado de polícia.

E José Galindo cavava. Como um louco, como José Galindo naquela noite. Ele uivava, ele gemia, ele praguejava e continuava cavando. Como uma escavadeira velocíssima, assim progredia José Galindo na remoção da terra.

A atividade física, o trabalho braçal, a pressa com que tudo era feito, muitas coisas contribuíam para que o Galindo ficasse cheio de suor e feridas, e ele parecia ser o único a não notar isso.

Quem ainda não sabia o que estava acontecendo, era naturalmente atraído pelo estardalhaço. Praticamente toda a cidade estava desperta, e grande parte dela estava na rua tentando saber o que se passava. Todos acabavam na porta do cemitério.

É forçoso admitir que o comportamento do Galindo chamaria a atenção em qualquer lugar do mundo, em qualquer cidade, de qualquer tamanho, aquilo nunca passaria despercebido. Ao menos neste caso não se pode criticar a dita curiosidade exagerada dos interioranos.

Claro que o ajuntamento diante do cemitério só fazia crescer. Vinha gente de todo lado, até da área rural mais perto da cidade.

O zelador do cemitério vivia numa casinha pegada ao campo-santo. Naquela noite, todavia, ele não se encontrava, fora a uma cidade vizinha para o velório de um parente. Mandou-se gente atrás do coveiro e do delegado.

E o Galindo cavava. Alguns lá fora, talvez até verdadeiramente preocupados, chamavam seu nome e perguntavam, como se fosse necessário, o que ele estava fazendo. Para o Galindo, era como se não fosse com ele.

A mulher e os filhos do Galindo, como sempre, encontravam-se fora, na capital, onde os filhos estudavam e a mãe deles cuidava. O Galindo também tinha alguns parentes nas cercanias, gente com quem ele tinha pouco ou nenhum contato, alguns primos que viviam em áreas pobres e que se preocupavam com o Galindo tanto quanto ele se preocupava com eles. Dois desses primos até apareceram lá no portão do cemitério, só que na mera condição de espectadores.

Havia também a Maria Elvira, amásia do porteiro municipal. Mandaram gente à casa dela, montada pelo Galindo — que desfilava todo cheio pela cidade com sua abastança de provedor de três casas: a dele, a dos filhos na capital e a de Maria Elvira, — e lá se encontrou tudo de pernas para o ar: móveis tombados e quebrados, roupas e louças e alimentos, inteiros ou em pedaços, espalhados pelo chão, água transbordando da banheira e das pias e, no quintal, Maria Elvira, seminua, desacordada.

Logo se via que algo acontecera ali. Algo grave. O quê, nunca se soube. Maria Elvira, depois que recobrou a consciência, sempre disse não se lembrar de nada.

E o Galindo cavava. Lá fora, aquela expectativa, um subindo no ombro do outro, primeiro para tentar pular o muro, mas a altura da queda do outro lado era muito grande, depois apenas para poder ver melhor o desatino do sujeito. Finalmente o coveiro apareceu; em seguida, o delegado.

O Galindo já estava com a obra praticamente concluída quando o coveiro destrancou o portão e a turba desabou para dentro, o delegado na frente. Enquanto isso, o Galindo acabou de cavar e passou a ajeitar o caixão, com a tampa aberta, no alto do monte de terra formado em frente à cova.

Enquanto o pessoal se aproximava — alguns corriam, alguns gritavam seu nome e advertiam-no para não fazer uma bobagem, — o Galindo pegou o maço de flores e se pôs de pé dentro do caixão acomodado no alto do monte de terra, com a extremidade dos pés ligeiramente inclinada para o lado da cova.

Então veio o momento culminante da noite, que muitos se arrependeram de não ter filmado.

De pé dentro do caixão, o Galindo tirou o barbante que envolvia aquele grosso maço de crisântemos. Em seguida, ele arremessou as flores o mais alto possível. Depois, muito rapidamente, sentou-se no caixão, apontou o revólver bem para o meio de sua testa e disparou. O impacto do tiro jogou-lhe o tronco para trás e deitou seu corpo, já cadáver, no fundo da urna. Com o forte impacto dessa deitada, o caixão começou a deslizar sobre o monte de terra e foi cair justinho dentro da cova.

Por fim, o caixão bateu no fundo da cova e, sob a chuva das flores jogadas para o alto, sua tampa se fechou. Logo em seguida, o monte de terra, que servira como uma espécie de rampa de lançamento, puxado pelo próprio movimento do caixão ao descê-lo, veio quase todo de volta para o buraco de onde saíra.

Em segundos, em muito menos tempo que o gasto agora para narrar o fato, lá estava o Zé, morto e enterrado. Logo ele.

A turba, depois de presenciar aquele feito, ainda ficou um bom tempo parada, estática mesmo, numa pasmaceira petrificante, sem entender o que havia testemunhado. Aos poucos todos voltaram a si. Uns foram para casa; outros, para o boteco da praça principal tomar uns goles. Quase ninguém voltou a dormir naquela madrugada.

Quando despertou do coma, Maria Elvira mal se lembrava do próprio nome. Com o tempo, sua consciência se restabeleceu, mas ela disse nunca se lembrar dos acontecimentos daquela noite.

Em muita gente do lugar, especialmente entre os notáveis, ficou uma sensação incômoda. Aquela morte do Galindo, tão estapafúrdia e sensacional, fora, sem dúvida nenhuma, um fato único, inigualável. Um suicídio, é verdade, mas um suicídio digno de livros de recordes e outros registros grandiosos. Uma proeza, na mais estrita acepção da palavra. Uma proeza que ninguém, absolutamente ninguém lembrara de filmar. Todos que testemunharam o feito, mais cedo ou mais tarde, morreriam, ficariam dementes, esqueceriam.

Mas a lenda se difundiu, transpôs fronteiras regionais e, como toda lenda, não guardou muita fidelidade para com o fato original — a velha história de quem conta um conto.

Os homens de visão da terra queriam buscar um meio de transformar aquela morte única numa fonte de riqueza. Cogitou-se inclusive de se explorar uma forma qualquer de turismo temático, o que gerou muita oposição da parte de religiosos e autoridades. No fim das contas, ao menos oficialmente, venceu a opinião de quem considerava aquele um episódio para tão-somente se esquecer. Isso absolutamente não impediu que, daí por diante, uma ou duas vezes por ano, principalmente quando do aniversário do formidável óbito, aparecessem na cidade êmulos de José Galindo, colocando a polícia e a imprensa, por motivos opostos, em alerta. Houve um que jogou um teco-teco na praça principal, outro que montou uma guilhotina e se decapitou em frente a uma churrascaria na hora do almoço. Havia quem ateasse fogo às próprias vestes, quem se fizesse devorar por uma sucuri — tudo sempre em praça pública — e também muitos que tentavam, sem sucesso algum, reproduzir à risca os passos de José Galindo.

Ninguém jamais se igualou a ele.

30.10.6